Filme chega aos cinemas na quinta-feira (29)

Por João Victor Ferreira

Um pacato povoado no meio do sertão brasileiro tem toda a sua realidade transfigurada quando alguns forasteiros ameaçam a sua convivência. Quem vê essa descrição, em um primeiro momento, poderia associar a trama de qualquer grande filme western dos EUA. Na verdade, trata-se do terceiro longa-metragem escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho, além de ser a primeira vez que ele divide essas cadeiras com o seu Diretor de Arte Juliano Dornelles. “Bacurau” é um filme corajoso, enérgico, catártico, que de novo fala do Brasil: o Brasil de antes, o de agora e o que está por vir.

Kleber continua com o seu apego pela regionalidade do sertão e dá uma nova cara estética para a região, em contraste com as obras que o precederam. Aqui ele retorna a temática narrativa de diferentes histórias, da mesma forma que ele fez em “O Som ao Redor”, e se distancia um pouco de uma trama mais intimista e focada, como em “Aquarius”. De fato, o protagonista aqui é o sertão, é Bacurau e, por consequência, todos os habitantes do vilarejo.

A direção conjunta de Kleber e Juliano deixa claro as referências que os moldaram, sem deixar de perder a autoria da obra. As referências aqui soam muito mais como influências estéticas e temáticas do que necessariamente uma replicação pura e simples. Transições que lembram a estética de Star Wars, composição cênica e ambientação dos clássicos westerns, uma tensão acumulada que flerta em certos momentos com o cinema de terror e por aí vai. A trilha sonora relembra a influência cinema novista que Kleber homenageia, com músicas que lembram os cenários criados por Glauber Rocha e Walter Lima Jr nos anos 1960.

De certo modo, a pulverização das tramas pode tornar o primeiro ato um tanto cansativo para alguns. Todavia, depois do primeiro incidente, a direção instala uma sensação de estranheza e tensão, de modo que a próxima imagem passa a ressignificar a anterior, prendendo a atenção do público durante duas horas que passam com ritmo. Cenas de tensão são esticadas ao ápice, lembrando os clássicos duelos mexicanos dos faroestes. A estranheza impressa no tom do filme se acumula, uma vez que a exposição é gradualmente entregue ao público, aumentando mais ainda as perguntas do que está acontecendo ali. A direção não trai ao público ao somar a tensão como em um balão de gás e, no terceiro ato, entrega uma solução que só poderia ser descrita como catártica.

A construção dos personagens é muito interessante e em alguns casos até caricata, lembrando muito os arquétipos de filme de faroeste: o bandido, o xerife, o músico espírito-livre e etc. O elenco de peso também entrega muito bem as atuações, com destaques para o personagem do Udo Kier, que interpreta um psicopata que mesmo assim possui suas próprias regras e princípios; Sônia Braga, que mesmo tendo um papel menos relevante do que em “Aquarius” consegue passar a dor de um passado recente que a tormenta, enquanto ao mesmo tempo carrega uma responsabilidade por todos que moram em Bacurau; e Silveiro Pereira que encarna um personagem icônico para o cinema brasileiro, competindo inclusive com Zé Pequeno e Capitão Nascimento. Um ponto fora da curva é a personagem da Bárbara Colen que, principalmente pela esquizofrenia das múltiplas histórias do filme, passa uma impressão de protagonismo, mas sem ter muito o que fazer na história.

“Bacurau”, com o seu elenco diverso e representação da resistência nordestina frente ao cenário do cinema nacional, alude a resistência do próprio cinema brasileiro em relação aos grandes estúdios americanos e a hegemonia do cinema premiado europeu. A mensagem política por trás de uma projeção futura (não tão distante, no filme) de um Brasil intolerante se faz muito importante em tempos tão difíceis para o cinema brasileiro. “Bacurau” é corajoso, enérgico, catártico, mas acima de tudo nordestino: acima de tudo BRASILEIRO.