Confira a opinião do cineasta João Victor Ferreira

Por João Victor Ferreira

2019 foi de fato um ano muito bom para a sétima arte como um todo - perdurando o estigma dos anos terminados em 9, como sendo antológicos para o cinema, da mesma forma que 1979 e 1999. Conclusão de diversas sagas de orçamento escandaloso (Vingadores e  Star Wars), promessas cumpridas de diretores antológicos (O Irlandês e Era uma vez em...Hollywood), além de diversos outros títulos originais de filmes independentes e produções de menor porte que deram o que falar por suas críticas, ou pelo apelo popular.

Em um ano tão bom para o cinema, não seria estranho presenciarmos uma edição tão bem ajambrada do Oscar (talvez sendo a melhor edição em 10 anos). Mesmo com títulos tão bem colocados e indicados na premiação do cinema americano, me obrigo a vestir a minha camisa de chato para chamar atenção a filmes muito bem resolvidos e que ainda assim foram completamente esquecidos da premiação de 9 de fevereiro.

A palavra injustiça talvez pese muito em um ano tão diverso na escolha de filmes. Todos que conhecem bem como funciona a sindicalização das escolhas para indicados em categorias no Oscar (funcionando de forma parecida com a votação por delegados da própria política americana), sabem muito bem que alguns filmes, por melhor que fossem, nunca conseguiriam alçar uma cadeira em alguma categoria da premiação.

Às vezes por falta de verbas em campanhas milionárias dos estúdios que disponibilizam que o seu filme seja assistido pelos votantes, ou talvez até pela falta de “burburinho” de filmes lançados distantes da época de seleção, tudo isso acaba se voltando de contra a longa vida de alguns filmes que são esquecidos todo ano.

Um grande exemplo de 2019 foram os filmes da produtora independente A24, que focou os seus recursos na independência criativa de seus realizadores e na consequente distribuição de seus filmes que, de modo bem geral, deram muito o que falar no ano passado (como foi o caso de O FarolMidsommar Jóias Brutas), mesmo quase nenhum sendo lembrado no Oscar desse ano. O foco do estúdio estava longe de alçar campanhas para os seus filmes nesta edição da Academia e por isso faz todo sentido essa falta de indicações.

Dito isso e, sem mais delongas, vamos ao que chamo de PEM (Prêmio Esqueceram de Mim), para os filmes que não podem ser esquecidos só porque não estão no Oscar de 2020. As regras são simples: para evitar injustiças e grandes demasiadas ovacionadas, cada filme só tem direito de uma indicação. Um filme, uma indicação, evitando que se torne aquele filme que cobre todas as categorias.

De qualquer modo, o aspecto mais relevante, importante e indispensável para determinado filme. Se o conjunto da obra falar muito mais alto que um aspecto em si, então o filme chega na categoria de Melhor Filme ou Melhor Filme Internacional. Vamos as indicações...

 

A Despedida (The Farewell)

Quando uma família chinesa acaba descobrindo que a sua matriarca têm poucas semanas de vida, devido a um câncer, alçados pela sua cultura e seus princípios, eles resolvem por não revelar esse fardo, arquitetando um casamento de família como desculpa para uma última despedida com a sua avó.

O filme da diretora Lulu Wang foi muito bem lembrado no Globo de Ouro como Melhor Filme em Língua Estrangeira, além de outras indicações como Melhor Atriz em Comédia ou Musical para Awkwafina, mas ainda assim completamente esquecido no Oscar de 2020. O enredo do filme é extremamente relevante e bem construído, dando enfoque às diferenças culturais que países e regiões diferentes têm com o luto e a perda. Lulu Wang constrói magistralmente a sua trama em cima desse paralelismo existente entre China e EUA, encabeçado pela personagem de Awkwafina, a neta Billi, que vive em Nova York desde pequena mas se vê dividida entre a sua vida particular e a tradição familiar que a formou.

O que assistimos aqui é um grande exemplo de alteridade cultural das diferenças entre uma tradição essencialmente individualista do mundo ocidental e o coletivismo familiar do oriental. Há algo extremamente pesado acontecendo nos olhos de cada membro daquela família, mas o problema não pode nunca ser discutido ou conversado com a intenção de preservar as condições de Nai Nai (Lu Hong).

Esse é um dos maiores contribuintes para gerar um subtexto sublime nas cenas, que mesclam essa falsa alegria, criando mais e mais camadas para o que é dito entre as personagens, que aparentemente nunca podem chorar na frente um dos outros. Esse controle da interpretação e as camadas que se sobrepõem já garantiriam uma indicação para Awkwafina ou para a delicadeza e inocência da avó, interpretada por Lu Hong. Acima de tudo, o filme só consegue existir dentro dessa orquestra, devido ao controle e noção cultural que a diretora tem dessas duas realidades que a formaram, passando uma verdade dolorida e extremamente sensível, fazendo com que... PEM: Melhor Direção (Lulu Wang)

 

Bacurau

Os moradores de uma comunidade do sertão nordestino brasileiro, chamada Bacurau, descobrem que a cidade não consta mais nos mapas. Daí é só “ladeira abaixo”, quando um grupo de estrangeiros começa a ameaçar a estabilidade da região.

Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles foram muito bem lembrados no Festival de Cannes de 2019, recebendo o Prêmio do Júri. Ainda assim, por falta de campanha e verba, o filme foi completamente esquecido da premiação do cinema americano, até por falta de representatividade dos filmes em língua estrangeira (mesmo Bacurau tendo diversas cenas de diálogos em inglês).

No final das contas, o filme escolhido para representar o Brasil na premiação foi "A Vida Invisível" de Ainouz Karim, outro excelente longa muito bem executado em sua proposta, mas talvez não tão relevante para a cultura brasileira no momento. A importância de um filme que se assume nacional e nordestino vem como um tiro de espingarda em uma sociedade que renega a sua própria história e não reconhece o valor de suas produções internas.

As personagens são arquétipos perfeitos tirados do âmago da nossa cultura, servindo para a trama que é trabalhada e nunca parecendo apenas bonecos sem camadas e sutilezas. São todos extremamente brasileiros e isso ajuda na identificação. Em uma proporção mais universal, Bacurau também fala da relação dominado e dominador, revolução, nacionalismo, família e como certas instituições mais tradicionais do que o próprio governo nos fazem quem somos.

O clima sertanejo e a mescla de gêneros que o filme apresenta dá um novo clima e ritmo para as produções nacionais, não tendo nenhuma vergonha de misturar as raízes do Cinema Novo que nos formou, com a cultura de westerns, suspense e terror que vem de fora, criando, dentro do princípio da  antropofagia, algo extremamente brasileiro e perfeitamente nordestino. A relevância de "Bacurau" é algo que não deve ser esquecido e somente isso o faz merecer ser nosso representante no Oscar, talvez calcando a indicação para...PEM: Melhor Filme Internacional (Bacurau)

 

Honey Boy

Otis (Lucas Hedges) é um ator em decadência que entra na reabilitação, com o intuito de exorcizar os traumas de sua vida passada. Ao longo do processo ele começa a lembrar de si mesmo com 12 anos (Noah Jupe), quando começou a sua carreira como astro de TV, vivendo com o seu pai James (Shia LaBeouf), um ex-condenado e viciado, que também passa por uma reabilitação.

Com uma pegada sensível e visceral de uma história independente, Alma Har'el dirige o roteiro escrito por LeBeouf que se baseia inteiramente na sua história de vida, contando as mazelas que o jovem ator sofreu na sua vida com seu pai. O filme é cru e extremamente sensível, passando a verdade por trás de uma história que apresenta toda uma tragicidade.

A direção sabe muito bem os momentos perfeitos de mesclar uma situação de esperança para a vida conturbada que pai e filho vivem, ao mesmo tempo que uma situação terrível os abate e voltamos à melancolia do presente de Otis. Esse "vai e vém" é importantíssimo para construir a trama, dando inclusive mais e mais camadas de atuação e subtexto para os dois.

Essa relação de antítese da própria história (que rima com a vida como ela é), nos garante momentos sublimes da beleza dentro da simplicidade, mas também nos garante momentos tensos e pesados de raiva e indignação. Mesmo com um roteiro afiadíssimo e uma direção extremamente consciente do que está fazendo, o grande destaque aqui é a interpretação de Shia LaBeouf que carrega todo o peso de um personagem com que ele viveu a sua vida inteira - o seu pai - sem nunca parecer caricato nem moralista.

Ele de fato é a alma do filme, além de também exercer o papel de antagonista, dando motivação, justificativa e dinâmica para a história de Otis. Uma indicação a ator coadjuvante não seria nada mais que justa nesse caso. Por isso...PEM: Ator Coadjuvante (Shia LaBeouf)

 

Joias Brutas (Uncut Gems)

Howard Ratner (Adam Sandler) é um dono de uma loja diamantes em Nova York que vê, com a venda de uma pedra rara não lapidada vinda da Etiópia, a sua grande chance de quitar as suas muitas dívidas. Tudo começa a dar errado quando a sua ganância irrefreável o faz ter escolhas duvidosas.

O longa dirigido pelos irmãos Safdie deu o que falar no festival de Toronto de 2019, acima de tudo pela interpretação muito comentada de Adam Sandler. O filme tem um ritmo frenético e uma tensão sem igual de uma história que emana ilegalidade e más escolhas do protagonista. O que assistimos aqui é a jornada de declínio de Howard e que, por conta de um roteiro afiadíssimo e uma direção consciente, é muito bem feito sem deixar nada óbvio em nenhum momento.

O filme bebe muito na fonte de filmes do Scorsese pela verborragia dos diálogos e a interposição de falas entre personagens distintos na mesma cena. O senso de urgência e falha dá uma ansiedade muito peculiar para as cenas, de modo que você sabe a todo momento que algo ruim vai acontecer ao personagem de Sandler, mas ainda assim você não acredita no que vê e torce por um mínimo sucesso que seja.

O filme é musculoso, enervante, frenético, mas muito bem amarrado. Com tantas virtudes na direção e no roteiro - trabalhado há quase 8 anos - fica muito difícil escolher apenas uma categoria que poderia ter sido indicada. Ainda assim, os boatos são verdadeiros, já que a interpretação de Adam Sandler é a cara do filme, já que o seu personagem não só nos carrega, mas nos mantém atraídos para assistir cada segundo de cena.

Sandler entrega os diálogos de forma magistral e parece reagir naturalmente em cena com os seus coadjuvantes, mérito dele ter entrado no personagem de maneira sem igual. Não há aqui Adam Sandler, você só vê Howard Ratner. A fragilidade interna que o personagem apresenta, somada a sua confiança desmedida do lado de fora são camadas muito bem transmitidas pelo ator que agora chega no seu trabalho mais consistente, nada mais justo que...PEM: Melhor Ator (Adam Sandler)

 

Meu nome é Dolemite (Dolemite is my name)

Rudy Ray Moore (Eddie Murphy) é um vendedor de discos em uma pequena loja que, como um comediante de pouco sucesso, e munido de sua ambição cavalar, tenta alçar o seu sonho de sucesso a partir da criação do seu personagem "boca suja" chamado Dolemite, que rapidamente se torna um expoente para a cultura negra americana dos anos 1970.

Novamente muito bem lembrado nas categorias de comédia no Globo de Ouro, o filme original da Netflix foi esnobado completamente da premiação do Oscar, corroborando para a falta de negros indicados esse ano. O filme em sua camada mais superficial é uma biografia do astro black Rudy Ray, responsável por disseminar grande parte da cultura negra do cinema americano nos anos 1970, gerando um público nichado que pouco a pouco alçou o status de cult do cinema pela sua importância.

Aos poucos, ao descascar a cebola, vemos que o filme também fala sobre representatividade no cinema e nos espaços, é também uma homenagem mais que bela do cinema de blackexploitation (muito mais do que o grande Jackie Brown, de Quentin Tarantino), até chegarmos em camadas mais universais como oportunidades e a falsa meritocracia, a busca pelo sucesso e o reconhecimento e o quanto que a ambição pode nos cegar da realidade, mesmo sendo o maior combustível de uma realidade adversa.

A alma do filme é sem dúvida alguma o personagem de Eddie Murphy que faz de forma magistral um papel que é muito ingrato e difícil: como ser dramático e ao mesmo tempo engraçado? Pois é, ele consegue. Destaque à interpretação de Wesley Snipes que representa tudo de ruim e ganancioso que alguém com "síndrome do pequeno poder" pode fazer. Meu nome é Dolemite é um sucesso em todos os seus aspectos.

É relevante, na mesma proporção que é divertido. É leve, na mesma proporção que é denso. É biográfico, na mesma proporção que exalta a ficção. Não seria menos que justo...PEM: Melhor Filme (Meu nome é Dolemite).

 

Midsommar - O mal não espera a Noite (Midsommar)

Após sofrer uma tragédia familiar, Dani (Florence Pugh) acompanha o seu namorado e uns amigos para uma viagem em um vilarejo no meio da Suécia para participar de sete dias em um festival de verão. O que seriam férias para tranquilizá-la, acaba virando um pesadelo ao se depararem com coisas estranhas em rituais pagãos nórdicos.

Mais uma vez Ari Aster emplaca com o seu novo filme em uma pegada parecida com o que havia feito anos atrás com Hereditário. O diretor é hoje um dos expoentes do que foi chamado de pós-horror, focando mais uma vez o seu filme nos horrores do drama interno de suas personagens, apostando muito mais na sugestão e no clima estranho e macabro, do que na escatologia visual e nos rotineiros sustos que o terror se propõem como gênero.

O filme aposta muito na iconografia visual de rituais pouco conhecidos e esquecidos pela nossa cultura ocidental, criando uma esfera de alteridade cultura única e que te faz perguntar a todo momento: "o que na verdade é normal? Será que o que eu acredito é que é normal, ou eu é que vivo em uma realidade normatizada?"

A fotografia e o design de produção são únicos, gerando uma experiência visual quase visceral e que une o belo com o macabro de uma forma muito plástica e não só narrativa. O advento de tudo acontecer de dia começa como um refúgio para os medos do público, pouco a pouco incomoda tanto quanto um soco no estômago, aumentando ainda mais a aflição do espectador (algo excepcional para o terror).

Ainda assim, o destaque aqui vai para a interpretação feminina que carrega emocionalmente o filme e o espectador das costas. São pelos seus olhos que vemos os horrores que acontecem e sentimos cada situação que atinge o personagem de Dani. É essa soma de personagem com interpretação que faz com que seja justo...PEM: Melhor Atriz (Florence Pugh).

 

Nós (Us)

O casal Adelaide (Lupita Nyong'o) e Gabe (Winston Duke) levam a família para passar um fim de semana em sua casa de praia. Eles curtem a sua estadia tranquila e em família, até o momento em que são abordados por um grupo misterioso que os fazem de reféns. As coisas começam a ficar mais macabras quando percebem que os assaltantes têm a mesma aparência que os membros dessa família.

Dirigido pelo aclamado diretor de Corra! Jordan Peele, Nós  volta mais uma vez para a construção imagética, somada as metáforas raciais e políticas que o diretor se propõe. A maior habilidade de Peele aqui, na qual ele já demonstrou fazer muito bem em dois filmes, é usar o terror da melhor forma possível, a fim de criar uma fábula que metaforiza algum mal estar contemporâneo (ou mais) que o diretor quer discutir.

É o esquema do cinema ser uma janela para a realidade e a ficção como sendo essa rima escrachada que incrivelmente absorvemos melhor do que os reais problemas a nossa volta. Todo o subtexto em cima da caricatura social que denota algum tipo de mal estar urbano por trás dos horrores fictícios que são demonstrados, lembram muito os trabalhos do cineasta John Carpenter, com trabalhos como Halloween e Eles Vivem!

A subversão dentro do próprio gênero dão uma nova vida e um frescor para a história que poderia se tornar óbvia e convencional. A antiga habilidade na comédia de Peele e o seu extenso conhecimento do terror vem a calhar em transformar e abrir como em um origami uma simples história de confinamento e sequestro em algo muito maior.

Ainda assim o destaque mais que merecido vai para a interpretação fenomenal de Lupita Nyong'o que não só carrega o filme e a trama nas costas, mas mostra de uma forma muito sutil e bem executada, diversas facetas de uma mesma personagem, mostrando uma versatilidade exemplar e característica na sua vida como atriz. A verdade que ela passa nos momentos de fragilidade só são comparados a imponência no olhar dos momentos de força e confiança. Mais do que merecido...PEM: Melhor Atriz (Lupita Nyong'o).

 

O Farol (The Lighthouse)

No final do século XIX, dois faroleiros precisam conviver juntos durante quatro semanas, isolados em um Farol no meio da Nova Inglaterra. O que era para ser apenas um trabalho, se torna um estudo sobre confinamento e desconfiança.

Mesmo lembrado, mais que justamente, na categoria de fotografia nesta edição do Oscar, "O Farol" continua sendo injustiçado pelo primor técnico e interpretativo de uma história que tem toda a cara da Academia. O texto é afiado e cheio de monólogos que engrandecem o peso emocional dos seus únicos dois personagens, que entram pouco a pouco nessa "bad trip" de desconfiança e loucura.

A direção sabe muito bem mesclar o peso dramático dessa história que gira em torno do personagem do Robert Pattinson, alternando entre os seus momentos sozinhos, em seus momentos discutindo com o personagem de Willem Dafoe, em seus momentos de fragilidade, mas também em momentos de completo surrealismo que acrescenta novas camadas sensoriais ao filme.

Mais do que uma história e de uma carta de amor ao Expressionismo Alemão dos anos 1930 - demonstrado pela fotografia e a mise-en-scene - "O Farol" mostra as potencialidades do cinema enervar o nosso desconforto e as nossas expectativas. Mesmo assim, o maior destaque aqui, até acima da perfeita direção de Robert Eggers (muito consciente do que queria fazer), é a visceralidade, o sarcasmo, a ironia e a brutalidade do personagem de Willem Dafoe que segura talvez o melhor monólogo de 2019, rendendo assim...PEM: Ator Coadjuvante (Willem Dafoe).