"Eu já senti a frieza das calçadas e a dureza do papelão", afirma o agora escritor Léo Motta

"Eu já senti a frieza das calçadas e a dureza do papelão". É assim que o ex-morador de rua e escritor Léo Motta, 39, autor do livro "Há Vida Depois das Marquises", explica a sua dedicação a quem ainda sente na pele o que ele já passou.

Para ajudar a população de rua, que sofre ainda mais com os efeitos da pandemia do novo coronavírus, Léo se empenha em conquistar voluntários que abracem a sua causa. Desde dezembro passado, ele já conseguiu a arrecadar ao menos 1.500 marmitas e doar para população de rua no Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro.

"A fila da fome é muito grande. São pessoas carentes do básico. Um dia, também recebi o que comer no Largo da Carioca. Já vivi na rua sob sol, chuva, revirando os lixos, com fome e, muitas vezes, sob olhares preconceituosos de estranhos", conta ele, que foi usuário de drogas e morou nas ruas da cidade entre junho de 2016 e janeiro de 2017.

Os recursos para marmita e também kits de higiene de doações, em pedido por meio das suas redes sociais.

"Eu ia conseguindo de 50 [marmitas] em 50 com os voluntários. Eles levavam as refeições prontas", contou. Com uma vaquinha online, no mês passado, reuniu 300 cobertores; há 15 dias, foram doados 100 pares de chinelos. Ele mesmo colocou no pé de alguns dos que moram nas calçadase marquises do Rio.

"Com a pandemia, os moradores de rua ficaram sem ter os recicláveis para catar. Além disso, as lojas do Centro estavam fechadas. Fui vendo essa necessidade por comida crescer a cada dia", lamenta.

Há duas semanas, Motta conta que se surpreendeu com uma cena ao sair do metrô no Largo da Carioca. Um rapaz, que aparentava ter 20 anos e não usava máscara, gritava com uma mulher.

"Eu não sou o vírus, não sou a doença. Não precisa fugir de mim". Alterado, o rapaz reagia à indiferença da mulher que ele havia abordado pedindo dinheiro. Naquele dia, o jovem morador de rua foi convidado por ele a aceitar uma marmita para o almoço.

Desta vez, porém, o escritor levou o rapaz para receber uma refeição doada pelo Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras).

Há pouco mais de um mês, o ex-morador de rua decidiu levar suas quentinas ao projeto dos franciscanos, que se tornou um ponto de referência na distribuição de doações no centro.

São entregues pelos franciscanos diariamente 500 refeições (350 no almoço e 150 no jantar) em uma tenda montada no Largo da Carioca.
Motta passou a direcionar a ajuda que recebia de oito projetos sociais ao trabalho do Sefras.

"A desassistência é muito grande. Agora, com o comércio reabrindo, não há mais apenas os moradores de rua na fila para receber as quentinhas. São ambulantes, desempregados e pessoas procurando por emprego", diz o Frei Diego Melo, coordenador da Tenda Franciscana no Rio e vice-diretor do Sefras, lembrando que a ação no Rio é uma extensão do projeto que também ocorre em São Paulo.

A ação social não é restrita à alimentação. Há distribuição de máscaras, kites de higiene, água e encaminhamentos para projetos sociais.

No último domingo, Carlos Oliveira, 48, há oito meses vivendo na rua, estava agradecido por receber a quentinha.

"Esse almoço é importantíssimo porque as doações estão acabando por aí. Aqui tem almoço e jantar. Isso é crucial". Há 12 anos nas ruas, Amanda Alves, 37, também estava na fila e agradecida ao projeto.

"Esse almoço é fundamental. É um almoço sem preço, sem palavras".

De acordo com Carla Beatriz, defensora pública do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh), o número da população de rua na capital do Rio cresceu após a pandemia. Ela estima que essas pessoas já sejam 18 mil na cidade, antes a estimativa era de 17 mil.

"Aumentou porque muita gente perdeu o emprego, não pode pagar o aluguel e foi parar na rua. Além disso, pessoas domiciliadas, que têm endereço, passam o dia na rua para receber alimentos das carreatas."