Há mais de 900 dias a pergunta "Quem mandou matar Marielle Franco?" ecoa sem respostas

Há mais de 900 dias a pergunta "Quem mandou matar Marielle Franco?" ecoa sem respostas. Para manter vivo o legado da vereadora, assassinada em 14 de março de 2018, sua família lança mão de iniciativas que possam impactar as eleições municipais de novembro e as estruturas da política nacional.

Na segunda (14), o Instituto Marielle Franco inaugurou o site da Agenda Marielle, um conjunto de compromissos e práticas elaborados a partir de discursos, entrevistas e projetos de lei da vereadora.

O objetivo é incentivar candidatos a se comprometer com essas pautas, levando o legado de Marielle do discurso à ação. Para cobrar a promessa, qualquer pessoa poderá se inscrever no site como defensora da agenda.

Nas eleições de 2018, cerca de seis meses após o assassinato da vereadora, a família recebeu inúmeros pedidos de apoio de candidatas de todo o país, que se apresentavam como "sementes de Marielle".

Segundo estatísticas do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o número de candidaturas de mulheres pretas cresceu cerca de 50% naquele pleito em comparação ao de 2014.
Irmã da vereadora, Anielle Franco diz que a agenda pode servir como um norte para que o legado da vereadora se multiplique com "respeito e princípio" e para que "Marielle não se torne palavra vazia".

"Nessa sociedade superficial, de redes sociais, é triste ver as pessoas usando as imagens de alguém da sua família de qualquer jeito, sem respeito ou legitimidade e, muitas vezes, sem estar alinhado ao que Marielle verdadeiramente defendia", diz à reportagem.

Anielle lembra que 2018 foi um ano muito duro e desgastante e que a família estava trabalhando "no automático". Para as eleições de 2020, foi possível respirar e pensar, estrategicamente, sobre qual seria a melhor forma de defender a memória da irmã.

Assim, Anielle, os pais e a filha de Marielle, Luyara, decidiram colocar as energias no Instituto Marielle Franco, criado em fevereiro para estimular mudanças na política junto à sociedade civil. Com isso, concluíram que não apoiariam diretamente nenhuma candidatura neste pleito.

"Entendemos que o instituto nos permitiria construir uma ação mais enraizada, a longo prazo. Mas a gente não está fora da disputa política, apenas fazendo política de uma maneira diferente", diz.

Em julho, o instituto anunciou o lançamento da PANE, uma plataforma antirracista nas eleições. Como primeira ação, os familiares de Marielle e outras organizações pressionaram o TSE para que os recursos do fundo eleitoral e os tempos de rádio e TV fossem equitativamente divididos entre brancos e negros.

O abaixo-assinado contou com cerca de 10 mil assinaturas. O ministro Ricardo Lewandowski decidiu na última semana que a divisão dos recursos, determinada pelo TSE, já começa a valer neste pleito.

O objetivo das ações é gerar mudanças nesta que será a primeira eleição municipal após o assassinato de Marielle, que somava pouco mais de um ano na Câmara Municipal do Rio quando foi morta.

"É triste pensar que ela estaria completando quatro anos de mandato, que tinha uma vida de sonhos e projetos pela frente. Talvez ela pudesse estar concorrendo à prefeitura ou apoiando candidaturas."

Após o assassinato da irmã, Anielle chegou a pensar em se candidatar, ideia da qual desistiu –ao menos por enquanto. Ela diz que considera os partidos "tóxicos" e que, se um dia for candidata, quer poder falar e ser o que quiser, sem "abaixar a cabeça".

"Nossa família entendeu que não seria o mais estratégico nem seguro. Acabei de dar à luz a minha segunda filha. A gente precisa estar vivo e saudável para seguir nessa longa jornada de mover estruturas."

Ainda assim, Anielle diz considerar importante quem se dispõe se candidatar.

Algumas candidaturas estão ligadas à plataforma da vereadora, como a de sua ex-assessora Renata Souza, que disputará a Prefeitura do Rio; a de Áurea Carolina, pré-candidata à Prefeitura de Belo Horizonte; e a de Monica Benicio, viúva de Marielle, que tentará uma vaga na Câmara do Rio. Todas são do PSOL, partido da parlamentar assassinada.

Monica, que passou os últimos dois anos denunciando o assassinato da mulher, inclusive fora do país, afirma à reportagem que sua candidatura é fruto de uma construção coletiva. Ela decidiu concorrer no último momento, apoiada por amigos ligados aos movimentos sociais -alguns participaram do mandato de Marielle.

Ela lembra que em 2018 recebeu muitos convites para se candidatar, mas que à época considerava a ideia incabível; sua dor ainda não tinha tomado contornos coletivos.

"Minha luta era: 'porque a minha esposa nunca chegou para o jantar e ninguém me explicou o porquê'."

Nos primeiros meses após o assassinato, Monica conta que ficou sem acesso a redes sociais e jornais e que não tinha a dimensão da repercussão de suas falas. Por isso estranhava quando pessoas que não conhecia a paravam na rua para dar parabéns por sua força.

"Eu não conseguia entender, porque me sentia absolutamente destruída. Não fazia sentido alguém me dizer que eu estava forte", afirma.

Ela diz que, conforme o tempo passou, encontrou na solidariedade a chance de ressignificar a vida. Afirma que sua candidatura é uma forma de manifestar a gratidão pelo apoio que recebeu e que seu corpo está "a serviço da luta".

"A dor do luto não passa. A primeira coisa que faço quando acordo é a contagem da execução da Marielle. Reviver isso diariamente é muito duro. Foi essa coletividade que me salvou", diz.

Assim como Marielle, Monica cresceu na favela da Maré, zona norte do Rio. Urbanista com pesquisa de mestrado voltada ao direito à cidade na perspectiva do favelado, ela diz que não teria seguido o caminho da política se a mulher não tivesse sido morta.

"Se tudo tivesse corrido como planejamos, nossa configuração familiar teria agora mais uma pessoa. A gente estava planejando engravidar em 2019, e eu estaria fazendo meu doutorado, a minha maneira de fazer política, por meio da academia", afirma.

A viúva de Marielle também decidiu pela política institucional por acreditar que fazer justiça diante do assassinato vai além da cobrança dos resultados do inquérito policial, que ainda não elucidou os mandantes do crime.

Para ela, identificar os mandantes é essencial, mas a justiça só será verdadeiramente alcançada quando pautas de Marielle avançarem, como os direitos das mulheres e a oferta de segurança e cultura de forma ampla na cidade.

"Isso passa por um enfrentamento da milícia e do discurso de ódio bolsonarista. Acredito na ocupação da Câmara para retomar a esperança numa política diferente", diz.

Monica afirma que a milícia, apontada pelos investigadores como responsável pela morte de sua mulher, precisa ser urgentemente combatida. E diz que o medo não pode ser um sentimento paralisante.

"O único medo que tenho de fato hoje é de não conseguir transformar as coisas, a política, a sociedade. Acho difícil que alguém consiga construir contra mim uma violência maior do que a que já sofri na noite de 14 de março."