Os conflitos aumentaram no final do ano passado quando uma das facções criminosas decidiu ampliar o território em direção a comunidades da Zona Oeste já dominadas pela milícia
A guerra constante entre traficantes, milicianos e policiais, que se arrasta há meses nos bairros da Grande Jacarepaguá, têm deixado muitos moradores e comerciantes amedrontados. A fim de preservar a própria segurança, muitos têm mudado a rotina e até mesmo o endereço. Mais de meio milhão de pessoas são afetadas por essas disputas, dentro e fora das comunidades. O aumento exacerbado de violência na região pode ser demonstrado a partir da diferença no número de homicídios registrados nas áreas das três delegacias de Jacarepaguá: 16 casos em janeiro deste ano, contra 4 casos no mesmo período, em 2022.
Os conflitos se agravaram a partir do ano passado, quando o Comando Vermelho decidiu ampliar a território de dominação, que resultou em embates diretos com a milícia. No momento, a Polícia Civil investiga se existem paramilitares que se associaram aos criminosos do Terceiro Comando Puro (TCP) para resistir às invasões. Ontem, em mais um dia de tensão na zona, dois suspeitos foram mortos durante a operação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) na Covanca, comunidade no Tanque. Um deles seria o chefe do tráfico na favela. Um outro corpo também foi localizado por PMs em um canal no bairro do Anil. A Delegacia de Homicídios foi acionada.
Toque de recolher
Uma moradora da Gardênia Azul – local disputado por duas milícias rivais, sendo uma delas apoiada pelos traficantes da Cidade de Deus – conta que não pode mais sair de casa após as 20 horas. Segundo a carioca, os traficantes impuseram um toque de recolher, além de proibir que portões e janelas fossem trancados. O bairro fica a poucos metros da Avenida Ayrton Senna e está a 6,4 quilômetros da Praia da Barra.
“Os traficantes retiraram todos os portões e as travas. Eles proibiram os moradores de trancar tudo porque, quando tem guerra, eles precisam de livre acesso para fugir. E não podemos sair de casa depois das 20h. Quero ir embora daqui. Já estou me planejando para sair. Essa é a única solução”, desabafa a moradora.
Perto de um acesso à Gardênia Azul, uma escola na Avenida Tenente Muniz de Aragão, localizada no Anil, precisou mudar os horários dos funcionários que residem nas áreas afetadas pela violência.
“Fizemos uma contratação recente de uma pessoa que fica o tempo todo no portão, atento à movimentação. A gente vê um grupo de motos passando e já fica atento. Tem sido uma situação bem tensa. Estamos perdendo alunos por conta dessas guerras. As mães não estão se sentindo seguras de passar aqui pela localidade” , disse a dona do estabelecimento, que também vem recebendo ligações de pessoas pedindo “contribuições”.
A prática de extorsão não é pontual. Na Freguesia, o telefone do restaurante Vista Alegue, fundado há 70 anos, também não para com os “pedidos”. O dono do comércio, Matheus da Rocha, de 25 anos, passou a fechar mais cedo e já teme pelo futuro do estabelecimento.
“Eles dizem que se eu não pagar o valor, vão vir aqui quebrar tudo. Fico com aquela sensação de insegurança porque não sabemos se as ameaças são verdadeiras ou não”, afirma. “A guerra que acontece dentro das comunidades se estende para cá”, completa Matheus.
Academia em casa
Esse receio também faz parte da rotina dos moradores. A designer Fernanda Vieira, de 45 anos, que vive há oito em um condomínio na Estrada do Pau-Ferro, na Freguesia — num trecho que já foi um dos mais valorizados da região —, tem evitado se deslocar à noite pelo bairro e só sai de casa de carro ou de veículo por aplicativo. Além disso, Fernanda toma outros cuidados: só passeia com seu cachorro dentro do condomínio, malha em casa e não frequenta áreas perto de onde costuma ter confrontos.
“Eu fazia academia no Anil. Uma vez, fiquei presa num tiroteio, isso não tem muito tempo. Tive que esperar a situação se acalmar para poder voltar para casa. Depois disso, tranquei minha matrícula. Tenho evitado me deslocar a pé. Tem muitos assaltos, e esses confrontos deixam tudo ainda mais perigoso”, pontua.
No Anil, onde a designer fazia academia, cinco pessoas foram assassinadas nas últimas duas semanas em ataques de traficantes a milicianos. Outras quatro pessoas morreram durante uma operação da PM na região.
Na Praça Seca – onde ficam as favelas Bateau Mouche, Chacrinha e do Barão –, a vida de moradores e comerciantes também está tolhida pela violência. Dona Diva – que prefere não dar o sobrenome –, de 62 anos, conta que não sai de casa quando escuta tiros.
“Sempre vou à rua de manhã, compro o que preciso e volto para casa logo. Não fico mais transitando para lá e para cá. Nunca se sabe quando vai estourar um tiroteio. É a milícia e o tráfico disputando a região, e quem paga esse preço são os moradores”, atesta.
O comércio da região também sofre com os impactos da violência. No Edifício Paço da Praça, inaugurado em 2004, o cenário é de fachadas sem letreiros, cadeados nas portas, lojas vazias e placas de “vende-se”. Um lojista denuncia que, com as disputas, a cobrança de taxas pelos milicianos tem ocorrido de forma “desenfreada”.
“Muita gente tem vontade de vender e não consegue. Quando o comprador fica sabendo sobre a situação, perde o interesse em comprar. A violência acaba desvalorizando o bairro. Quem quer morar num lugar onde tem tiro todos os dias, e você nunca sabe a hora que pode entrar ou sair?”, questiona a trabalhadora.
A violência prejudica até o tratamento de saúde dos moradores. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, em janeiro e fevereiro deste ano, as 19 unidades da região registraram 24 fechamentos.
No Campinho, onde fica o Morro do Fubá, a Faculdade Souza Marques fechou parte de suas unidades devido aos confrontos. Alunos do curso de medicina, que pagam, em média, R$12,6 mil de mensalidade, estão estudando de forma remota e tendo algumas aulas presenciais na unidade da Tijuca. Até a sede da Ordem dos Advogados do Brasil no bairro cancelou as atividades na semana passada para proteger seus funcionários.
Mais roubos de carros
Na última semana, a insegurança na Grande Jacarepaguá foi pauta da Comissão de Segurança Pública da Alerj. Além dos conflitos entre criminosos, o número de roubos de veículos quase dobrou nas áreas das três delegacias da região. Foram 49 casos em janeiro de 2022 contra 86 no mesmo mês deste ano. André Fonseca, presidente da Associação dos Condomínios da Freguesia, relatou no encontro que se mudou para o bairro há 16 anos para fugir da violência na Ilha do Governador, na Zona Norte:
“Perdemos nosso direito constitucional de ir e vir. Vejo muito discurso vazio e pouca ação do Poder Público. Recebo relatos diariamente de assaltos”, ressaltou.
Procurada, a Polícia Militar informou que vem direcionando “amplo efetivo” para coibir as movimentações criminosas na região e fez 84 prisões, além de ter apreendido 13 fuzis, 28 pistolas e mais de duas toneladas de drogas em 2023. O batalhão de Jacarepaguá mudou de comando no início do mês passado.
Veja a nota da PM na íntegra:
A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que, somente em Jacarepaguá, a Corporação realizou 84 prisões e apreendeu 13 fuzis, 28 pistolas e mais de duas toneladas de drogas, além de ter removido mais de dez toneladas de obstáculos colocados em vias públicas ("barricadas") neste ano de 2023.
A corporação vem direcionando amplo efetivo do 18ºBPM (Jacarepaguá) e de outras unidades para coibir as movimentações criminosas que afetem esta região e também atuando em ações de inteligência junto à Polícia Civil, compilando dados que direcionam as estratégias e ações realizadas. Esse trabalho monitora o deslocamento dos criminosos no terreno e visa a interceptação preventiva desses grupos antes de suas investidas no perímetro.
Vale ressaltar que a corporação já conta com quatro bases avançadas do 18º BPM - uma localizada na Comunidade do Bateau Mouche e outras três no Morro do São José Operário (nas localidades da Igrejinha, do Rabo da Gata e do Rodo) – e está instalado mais uma dessas bases na Comunidade da Tirol.
Em fevereiro deste ano, foi instalada uma base avançada do 9º BPM (Rocha Miranda) no Campinho, nas proximidades da Comunidade do Fubá. Nesta região, foram realizadas 20 prisões e foram apreendidos 13 fuzis e cinco pistolas neste ano de 2023.
As equipes do Comando de Operações Especiais (COE) da corporação – através do Batalhão de Polícia de Choque (BPChq), Batalhão de Ações com Cães (BAC), do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) e do Grupamento Aeromóvel (GAM) – também estão sendo empregadas nas ações conjuntas, inclusive atuando nas regiões de mata, no intuito de combater toda e qualquer empreitada ou movimentação criminosa nas regiões do Campinho e da grande Jacarepaguá.