Júlia Barbon e Italo Nogueira (Folhapress)

As investigações da Polícia Civil sobre as mortes de 27 civis na favela do Jacarezinho, na operação mais letal da história do Rio de Janeiro, se iniciaram com depoimentos padronizados dos policiais envolvidos e foram abertas já considerando como hipótese clara a atuação em legítima defesa.

A prática de unificar testemunhos de agentes de segurança e adotar o confronto como tese inicial é comum em inquéritos de óbitos por intervenção policial no estado. Nesse caso, ela se repetiu até em uma ocorrência em que os próprios policiais declararam não saber como a vítima foi morta.

Os depoimentos sob sigilo, obtidos pela Folha, mostram que, entre os 31 agentes que foram ouvidos como testemunhas, 26 tiveram os trechos iniciais de seus relatos descritos praticamente com as mesmas palavras pela Delegacia de Homicídios (DH) naquele dia 6 de maio, horas após a incursão.

Além disso, em 11 dos 12 inquéritos abertos para apurar o massacre, os delegados formalizaram o início das investigações escrevendo que "as circunstâncias do fato indicam uma hipótese clara de atuação em legítima defesa por parte dos policiais".

No caso de Matheus Gomes dos Santos, 21, por exemplo, que foi achado morto numa cadeira de plástico, o delegado Cassiano dos Santos Conte diz que, "segundo consta dos autos, ele atentou contra a vida de agentes do Estado, junto com outros elementos, e [praticou] tentativa de homicídio qualificado" contra eles.

Os agentes que registraram a ocorrência, porém, contam apenas que o jovem foi achado ali, baleado e desarmado após um dos confrontos, sem sequer assumirem serem autores dos disparos. Ambos afirmam que o homem "lhe pediu ajuda" e que providenciaram o socorro de imediato, mas Matheus foi fotografado já morto por moradores, com um dedo na boca.

A DH é subordinada ao Departamento Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa, cujo diretor, delegado Roberto Cardoso, afirmou horas depois da operação que "não houve execução". Ele apontou o homicídio do policial André Frias, 48, logo no início da ação, como "prova cabal" da legalidade na atuação dos agentes.

O sociólogo Michel Misse, da UFRJ, que já pesquisou investigações do tipo, afirma que a padronização dos testemunhos indica manipulação. "Depoimento não pode ser padronizado. Ele é individual, não há depoimento coletivo. As descrições com a mesmas palavras parecem forjadas. É preciso que o Ministério Público apure", diz.

Segundo ele, os registros costumam ser feitos sem cuidado porque apurações de óbitos por policiais normalmente têm como únicas testemunhas os próprios policiais. É o caso da maioria dos inquéritos do Jacarezinho –apenas alguns deles ouvem parentes dos mortos ou famílias que relataram terem sido feitas reféns por criminosos.

"Como geralmente não há testemunhas, em geral fica por isso mesmo. Do ponto de vista do sistema de Justiça, [deveria ser registrado como] um homicídio. Se foi legítima defesa, vai se apurar depois. Não se pode fazer um registro administrativo para induzir que não foi homicídio", afirma Misse.

Procurada, a Polícia Civil disse que só se pronunciaria sobre as apurações após sua conclusão, "evitando qualquer precipitação".

Uma força-tarefa montada pelo Ministério Público estadual conduz uma investigação independente que ouviu familiares das vítimas e testemunhas e fará o mesmo com os agentes envolvidos. Muitos moradores não quiseram depor por medo, e há relatos de ameaças na comunidade.

Os trechos padronizados dos depoimentos colhidos na delegacia em 6 de maio descrevem a preparação e o início da operação. A maioria dos policiais integra a Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), a tropa de elite da Polícia Civil, mas também há relatos semelhantes de policiais da Desarme e da 32ª DP (Taquara).

Eles dizem que foram acionados para apoiar a delegacia responsável pela ação (DCAV, de crimes contra a criança e o adolescente) e que foram informados durante o "briefing" que o objetivo seria "apreender armas e drogas, capturar lideranças do tráfico e cumprir mandados de prisão".

Em seguida, traçam um "perfil" idêntico da favela: "[Afirma] Que a comunidade do Jacarezinho é dominada territorialmente pela facção autodenominada Comando Vermelho (CV); que os traficantes daquela localidade têm o costume de preparar emboscadas para matar policiais; que os delinquentes se posicionam em 'seteiras' para alvejar agentes e não serem vistos".

Os relatos continuam afirmando "que vários membros desse grupo criminoso também publicam em suas redes socias que desejam atacar e executar policiais" e que "as equipes da Core eram coordenadas pelos delegados Fabricio Oliveira e Fabio Salvadoretti". Depois, grande parte deles narra o início da incursão da mesma forma.

"[Disse] Que logo no início da operação as equipes da Polícia Civil foram atacadas por diversos tiros dos becos, das lajes e das 'seteiras' e que vinham de várias direções; que um policial [...] foi alvejado e morto pelos traficantes; que durante toda a operação a troca de tiros era intensa; que o declarante percebeu que vários traficantes, a todo tempo, cercavam e atiravam nos policiais".

A prática de "copiar e colar" as declarações segue para além dessa "introdução" nos relatos de agentes que participaram de uma mesma ocorrência. Também ocorre em casos em que os policiais foram chamados para dar um segundo depoimento, dias ou semanas depois.

Os primeiros testemunhos dos policiais foram lançados no sistema das 17h19 às 21h36 no dia da operação, na Delegacia de Homicídios, na Barra da Tijuca (zona oeste). Enquanto alguns foram registrados com mais de dez minutos de diferença, outros têm intervalo de apenas seis a um minuto.

É o caso das mortes de Jonathan Araujo da Silva e Cleyton Freitas de Lima, por exemplo, dentro de uma casa. O depoimento do policial Bruno Martins da Silva foi inserido às 18h09 e o de seu colega Juan Felipe Alves da Silva, às 18h10, pelo mesmo delegado e escrivã. As oitivas têm praticamente a mesma redação, apenas trocando os nomes.